quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Ferrari




As tardes na Ferrari, da Rua Nova do Almada, às horas do chá, como nas boas manhãs de suculentos almoços, eram bem passadas e corriam rápidas. Alimentava-se o corpo e o espírito; a tradição, envolta em substâncias saborosas, como as trouxas de ovos, fabricadas pelo grande Ferrari, continuadas pelos seus sucessores e que fizeram as delícias das bisavós, das avós e das mamãs das frequentadoras desta casa tradicional.

Quando o velho Hilário da Cruz Ferrari, aí por volta de 1821, tinha o seu estabelecimento na Patriarcal Queimada, já era de frequência boa a loja do celebrado conserveiro genovês. O que ele cultivava tão bem como a arte culinária, era a política.

Miguelista ferrenho, zelador dos bons costumes e créditos da sua rua, foi dos que usou a medalha com a Real Efígie e andou em vigilância de cabo de polícia pelo Bairro Alto. Largou para Elvas, de fugida, quando os constitucionais chegaram. A sua casa foi reduzida a cinzas. Se ele tivesse apenas feito as suas deliciosas tortas, os fornos continuariam acessos, sem que os seus telhados abatessem. Ficou a saudade do tempo em que era fino, chique, entrar nessa loja agora devastada.

Colecção particular
O filho guardara-lhe as receitas e a tradição, chamava-se Mateus Ferrari e mudou-se da Cotovia para a Baixa, para o novo estabelecimento na Rua Nova do Almada sensivelmente em 1827; na casa estivera, anteriormente, instalada uma modista da maior nomeada: a Oliveira Botto!

Este espelendido conserveiro fez as suas armas nobres. “O pai fora político e ali acorriam todos os políticos, o pai sacrificara-se por um Rei e a Família Real dera a sua freguesia ao Ferrari; era estrangeiro e os embaixadores serviam-se de sua casa, a sua pastelaria, a sua cozinha, a sua mão de artista tinham ganho a consagração e de tal maneira, que obteve a maior honra dessa época em seu mister. Foi ele que arrematou o botequim da Ópera São Carlos! Anos a fio serviu com atenções e com esmero, enriqueceu e jamais deixou de trabalhar e por cada ano que decorria maior era a sua fama.

Foi chique ir ao Ferrari quando Costa Cabral trovejava e comer no Ferrari quando os marechais se revoltavam; mandar servir ceias do Ferrari quando D. Estefânia veio casar a Lisboa; fornecer a seus convidados as belas comidas do Ferrari quando Saldanha estilhaçava os vidros do Paço Real. Em frente a todos os acontecimentos da história, jamais o Ferrari deixou de manter os seus pergaminhos de casa preferida pelas sociedades altas que sucessivamente foram dominando.
Colecção particular
E ali, num canto cómodo daquela casa tradicional, como deve ter sido bom recordar a tradição e comer o seu almoço ou beber o seu chá, enquanto se pensava em tudo quanto viram aquelas paredes...

O Ferrari morreu, mas o que ficara, o que não se finaria, foi a tradição das suas receitas maravilhosas. Isto é que não morrerá! E tem-se a sensação que o insigne genovês, lá do céu, onde passeia com Vatel, deve, de quando em quando, inspirar os sucessores para que Lisboa conserve o seu restaurante das tradições.

Infelizmente este estabelecimento desapareceu aquando do pavoroso incêndio do Chiado no dia 25 de Agosto de 1988 e com ele foi-se a tradição da Pastelaria Ferrari...
 Coorden. e  ilustrações: marr