As tardes na Ferrari, da Rua
Nova do Almada, às horas do chá, como nas boas manhãs de suculentos almoços,
eram bem passadas e corriam rápidas. Alimentava-se o corpo e o espírito; a
tradição, envolta em substâncias saborosas, como as trouxas de ovos, fabricadas
pelo grande Ferrari, continuadas pelos seus sucessores e que fizeram as
delícias das bisavós, das avós e das mamãs das frequentadoras desta casa
tradicional.
Quando o velho Hilário da
Cruz Ferrari, aí por volta de 1821, tinha o seu estabelecimento na Patriarcal
Queimada, já era de frequência boa a loja do celebrado conserveiro genovês. O
que ele cultivava tão bem como a arte culinária, era a política.
Miguelista ferrenho, zelador
dos bons costumes e créditos da sua rua, foi dos que usou a medalha com a Real Efígie e andou em vigilância de cabo de polícia pelo Bairro Alto. Largou para
Elvas, de fugida, quando os constitucionais chegaram. A sua casa foi reduzida a
cinzas. Se ele tivesse apenas feito as suas deliciosas tortas, os fornos continuariam
acessos, sem que os seus telhados abatessem. Ficou a saudade do tempo em
que era fino, chique, entrar nessa loja agora devastada.
Colecção particular |
Este espelendido conserveiro fez as suas armas nobres. “O pai fora político e ali acorriam todos os políticos, o pai sacrificara-se por um Rei e a Família Real dera a sua freguesia ao Ferrari; era estrangeiro e os embaixadores serviam-se de sua casa, a sua pastelaria, a sua cozinha, a sua mão de artista tinham ganho a consagração e de tal maneira, que obteve a maior honra dessa época em seu mister. Foi ele que arrematou o botequim da Ópera São Carlos! Anos a fio serviu com atenções e com esmero, enriqueceu e jamais deixou de trabalhar e por cada ano que decorria maior era a sua fama.
Foi chique ir ao Ferrari quando
Costa Cabral trovejava e comer no Ferrari quando os marechais se revoltavam;
mandar servir ceias do Ferrari quando D. Estefânia veio casar a Lisboa;
fornecer a seus convidados as belas comidas do Ferrari quando Saldanha
estilhaçava os vidros do Paço Real. Em frente a todos os acontecimentos da
história, jamais o Ferrari deixou de manter os seus pergaminhos de casa
preferida pelas sociedades altas que sucessivamente foram dominando.
Colecção particular |
O Ferrari morreu, mas o que
ficara, o que não se finaria, foi a tradição das suas receitas maravilhosas.
Isto é que não morrerá! E tem-se a sensação que o insigne genovês, lá do céu,
onde passeia com Vatel, deve, de quando em quando, inspirar os sucessores para
que Lisboa conserve o seu restaurante das tradições.
Infelizmente este
estabelecimento desapareceu aquando do pavoroso incêndio do Chiado no dia 25 de
Agosto de 1988 e com ele foi-se a tradição da Pastelaria Ferrari...
Coorden. e ilustrações: marr